Epifabiconia

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Archive for the ‘comunicação em LP 2 a’ Category

Leila Correa (crônica)

Posted by epifabiconia em junho 20, 2008

OITO E QUINZE
Oito horas e quinze minutos da manhã. Esse era o horário que os relógios marcavam em Hiroshima quando a primeira bomba atômica explodiu, em 6 de agosto de 1945. Ao todo, 210 mil mortos e um número incalculável de feridos.

Oito horas e quinze minutos da manhã de um dia qualquer. Saio de casa e, antes mesmo de virar a esquina, vejo meninos pedindo dinheiro na rua.

Oito horas e quinze minutos. Escuto uma freada de carro. Urros e vozes masculinas discutindo para achar o culpado do acidente que causa um congestionamento de muitos quilômetros.

Oito horas e quinze minutos. Uma menina de apenas 14 anos joga-se da janela do seu apartamento, a 20 metros do chão. A multidão observa curiosa, e alguém chama uma ambulância.

Oito horas e quinze minutos. Um casal de namorados discute. A mulher chora, desespera-se. O homem a acusa, grita palavras rudes.

Oito horas e quinze minutos. Uma jovem esbarra em um senhor, que ignora seu pedido de desculpas e reclama da falta de educação desses adolescentes. O sorriso dela transforma-se rapidamente em um olhar cheio de rancor.

Oito horas e quinze minutos. Acontece o tempo todo, todos os dias.

As crianças aprendem no colégio a história da Segunda Guerra Mundial, mas raramente refletem sobre ela. Não pensam nas reais causas da guerra, em como foi possível tamanha desumanidade. Não pensam na aproximação dos horrores cometidos em tempos difíceis com os pequenos atos de grosseria que exercemos todos os dias. Não só as crianças não pensam nisso, como os adultos também não.

Jogar a bomba sobre o Japão, forçando o país a se render, é a catarse de um processo muito maior. É o resultado final da falta de preocupação com os outros. Se não achamos um absurdo fechar o vidro do carro no sinal, para não termos que olhar os moradores de rua, como podemos julgar um país que mata milhões de pessoas inocentes por um motivo besta? No fim das contas, tem tudo a mesma lógica.

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Henrique Casagranda (crônica)

Posted by epifabiconia em junho 18, 2008

ANALÓGICO OU DIGITAL?

Tenho um sério problema com relógios analógicos: não consigo entendê-los. Por diversas vezes, quando me perguntam se tenho horas, paro um instante, frente-a-frente com aquele ser esquisito, e tento desesperadamente interpretá-lo. Talvez não seja uma tarefa muito difícil, mas o fato é que não sou tão habilidoso com os ponteiros. É necessário identificar primeiro qual representa as horas, qual representa os minutos e qual representa os segundos. Depois, preciso me concentrar em medir a distância entre os ponteiros e os números que estão mais próximos para informar a hora certa e não adiantar ou talvez atrasar o sujeito. Aí é só cruzar os dados e pronto, já sei que horas são. Mas nem sempre os números estão escritos, o que pode dificultar ainda mais essa árdua tarefa.

As pessoas normalmente ficam impacientes com a minha demora em responder. Hoje em dia, tempo é dinheiro e ninguém quer desperdiçar o seu. Por isso, prefiro relógios digitais. Com eles, em questão de segundos, já sei informar com precisão o horário correto. O relógio do computador é o melhor exemplo de praticidade em relógios digitais. É fantástico, ele se ajusta automaticamente ao horário de verão!

Acredito que essa seja a finalidade da tecnologia no mundo moderno: facilitar a nós, usuários, a execução de tarefas corriqueiras no dia-a-dia. Dessa forma, sobra mais tempo para nos dedicarmos a outros fins. Difícil mesmo é decidir o que fazer com o tempo que nos sobra. Entretanto, na minha situação, os relógios analógicos acabam causando o contrário. Mas analisando melhor essa situação constrangedora com o relógio de ponteiros, percebo que, na realidade, analógico sou eu, que ainda não descobri uma forma mais rápida de decifrá-lo.

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Leandro Rodrigues (mote Tchekhov)

Posted by epifabiconia em junho 2, 2008

A APOSTA MAIS ALTA

Estava tenso, mas não poderia ser diferente. Viajaram quase novecentos quilômetros para estar ali, conheceram-se melhor durante a viagem, e reconheceram afinidades. Receoso pela possibilidade de ser descoberto, demorou alguns minutos até relaxar e perceber as oportunidades que a situação proporcionava. Homem de rígidos padrões morais, foi convencido a viver aquela experiência e, já que estava ali, que fosse de verdade. Preferiu acreditar que as luzes multicoloridas piscando freneticamente lhe deixaram inebriado; bebeu aqueles drinques como se fossem água; a garganta ainda seca.

Não era a primeira vez que entrava em um cassino, mas seria seu “debut” nas apostas, e isso lhe causou ansiedade. Apostou pouco, no começo, e entendeu como o jogo funcionava. Com a astúcia que lhe era própria conseguiu, em pouco tempo, duplicar o valor inicial. Chamou a atenção. O nervosismo  inicial cedeu lugar à empolgação. Sentia-se livre. Poderia, ali, ser diferente, ou melhor, ser ele mesmo, despir-se das personagens que a sociedade lhe impunha. Baseado nessa certeza, puxou para si sua companhia, e apostou alto. Deu-lhe um grande beijo – bem recebido, mas não sem surpresa –, posicionou suas fichas e rolou os dados. “Alea jacta est”, pensou. A sorte foi lançada. Naquela noite  sorte parecia querer lhe acompanhar. Atônito com o resultado, calculou incrédulo que aqueles dados lhe renderam um milhão. Um milhão! Os instantes entre a constatação e o anúncio de sua vitória vieram acompanhados de uma estranha, mas agradável, vertigem. Súbito parecia que o cassino inteiro girava a seu redor. Achou melhor parar por ali. A sorte não dura pra sempre, pensou.

Foram para o quarto do hotel, cansados mas extasiados com a noite, que ainda não havia terminado. Pediram o melhor champanhe, afinal precisavam comemorar em grande estilo. Tudo correu tão perfeitamente que ele achou até piegas, tal qual um filme hollywoodiano. Amaram-se a noite inteira, sem pudores nem vergonhas, e só adormeceram quando o sol já ia alto.

Acordou às quatro da tarde. Nunca acordara àquele horário, mas, dessa vez, permitiu-se. Silêncio no quarto, olhou para o lado e percebeu-se sozinho no grande leito da melhor suíte do hotel. Foi ao banheiro, e lá achou um bilhete, grudado no espelho com um chiclete. “A noite foi maravilhosa, inesquecível. Sinto muito, mas não resisti à tentação. Beijos. Horácio”. A mesma vertigem da noite anterior, agora nada agradável – seria o champanhe? – lhe causou náuseas, e vomitou ali mesmo, na luxuosa pia daquele asséptico banheiro.

Poderia ter considerado aquela noite uma emocionante aventura, onde pôde assumir aspectos recônditos de sua personalidade, conhecendo o paraíso e o purgatório no espaço de doze horas. Não superou. Em seu funeral, apenas um arrependido Horácio compreendeu aquele ato derradeiro. E chorou, muito, pelo amor que vendeu ao módico valor de um milhão de euros. Ao contrário de Josias, Horácio não sabia apostar.

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Matheus de Castro (mudança de ponto de vista)

Posted by epifabiconia em maio 30, 2008

ANGÚSTIAS

 

Até uns anos atrás, ainda tinha a companhia do meu neto que, desde a morte dos seus pais, morava comigo. Era calado, mas transparecia seus pensamentos com suas expressões faciais, as quais eu tinha que decifrar.

Me lembro bem de sua partida, quando foi para a capital estudar. Enfim havia chegado a hora que ele tanto esperava, e eu tanto temia. Acostumada a tê-lo sempre por perto teria agora que confiar na eficácia dos meus numerosos conselhos. Como todo jovem, ele ansiava por liberdade e independência. Não pensava muito nos possíveis contratempos que iria encontrar. Na véspera de sua viagem, sua angústia estava bem visível. E assim também estava a minha.

Ao auxiliá-lo com as malas, mal conseguia olhar nos seus olhos. Sabia que iria cair em prantos e isto o deixaria constrangido. Ele seguia o que pensava ser o modelo de homem: tentava assumir uma postura indiferente e fria. Tentava ocupar-me para não pensar no que seria tão doloroso para mim: a partida de mais um filho do meu ninho. Lavei a louça, guardei os talheres e os pratos. Reconfortei-me com a idéia de ir buscá-lo na estação quando viesse me visitar. Pensei na saudade que ele talvez pudesse sentir de mim e na aproximação que isso nos proporcionaria. Imaginei as vezes em que ele desejaria que eu estivesse ao seu lado para ajudá-lo com suas tarefas e para levar-lhe um café na cama. Decidi, então, preparar uma feliz despedida. Arrumei a mesa de jantar com os melhores apetrechos de que dispunha. Troquei várias vezes a disposição dos lugares indecisa se preferia que ficássemos de frente um para o outro, ou se deveríamos ficar lado-a-lado. Dobrei os guardanapos de todas as formas que conhecia até escolher uma que me satisfizesse. Fui dormir.

            Imagens angustiosas do meu netinho entrando no trem me doíam. A ansiedade a respeito do nosso último momento juntos me torturava. Pensava no que seria adequado dizer. Tentava reduzir ao máximo os conselhos, sabia o quanto isto o incomodava, pois, com sua prepotência juvenil, julgava que tudo sabia. Imaginava como seria bom nosso último abraço, sonhava com palavras doces que poderiam sair sem querer da sua boca. Tantos pensamentos não me deixavam dormir, até o momento em que não sabia mais se estava acordada ou divagando.

            Sonhava com coisas belas e leves, o choro de saudade precipitada havia feito com que o peso que sufocava meu peito se aliviasse. Uma sensação de otimismo me dominava. Foi quando uma mão no meu ombro me trouxe de volta à realidade. Havia dormido demais? Teria perdido a chance de fazer tudo o que havia preparado na véspera? Meu neto dizia que decidira sair mais cedo. Provavelmente não suportava sua ansiedade. Deu-me um beijo na testa e foi-se. Deixando para trás uma cama vazia, um quarto inútil e uma mesa posta.

 

(texto baseado no conto A partida, de Osman Lins)

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Rafael Zenato (mote Tchekhov)

Posted by epifabiconia em maio 30, 2008

VÍCIO

 

            Carlos havia aprendido a jogar pôquer com um primo, ainda na adolescência. No início jogava apenas por diversão e não o fazia com muita freqüência. Entretanto, quando completou 40 anos, tornou-se cliente assíduo do “The King”, famoso cassino da região.

            Como dono de uma empresa na indústria de plásticos, Carlos era bem sucedido financeiramente. Este sucesso, no entanto, nunca representou alguma felicidade. Sem filhos, sem bons amigos, e com um casamento monótono, jogar pôquer há anos era sua única alegria.

            A esposa, Cláudia, insistia para que parasse de jogar. Ela tentava convencer o marido de que ele estava viciado. Carlos, de certa forma, também passou a preocupar-se com o possível vício. Em relação à esposa, não deu o braço a torcer. Prometeu, porém, para si mesmo que, quando ganhasse uma boa grana, pararia de jogar.

            Era sexta-feira à noite. Como de costume, foi ao The King. Dirigiu-se a uma mesa de pôquer. O jogo estava para começar. Colocou seus óculos escuros e um leve sorrisinho no rosto. Era assim que jogava, sempre. Logo na primeira rodada,  viu que tinha uma boa mão. Apostando bem, faturou uma certa quantidade de fichas. Sentiu uma imensa liberação de tensão do seu corpo. Relaxou na cadeira, mantendo, contudo, a mesma expressão facial. Carlos estava jogando bem e ainda contava com a sorte. Um a um, os adversários foram sendo eliminados da partida, até que só restou um homem na mesa, além dele. As primeiras rodadas entre os dois foram tímidas, sem golpes arriscados. A partida toda já durava cerca de três horas. Ao receber as cartas mais uma vez, Carlos viu que este poderia ser seu dia de sorte.

            Confiantes, os dois homens foram apostando alto. Cada vez mais alto. E mais alto ainda. Todas as fichas já estavam na mesa. Um milhão de dólares sobre o pano verde. Ao revelar suas cartas, Carlos lembrou da promessa que fizera a si mesmo. Nem chegou a ver o jogo do adversário. Só viu sua cara de decepção. Sou um quarentão milionário, pensou. Sorriu. Gargalhou, enquanto apreciava a beleza das fichas que reluziam sobre a mesa. Recebeu o dinheiro das mãos do próprio dono do cassino, numa mala preta. Os seguranças do estabelecimento o acompanharam até o carro. Foi para casa.

Ao entrar no quarto, viu que a mulher dormia. Levou o braço em direção a ela, pensando em acordá-la. Num impulso, recuou. Se contasse à esposa, definitivamente não teria desculpa alguma para voltar ao cassino. Sentiu um vazio imenso. Não acreditava. Sentia-se traindo a si mesmo. Tudo que queria era jogar mais uma ou outra partida. Viu que Cláudia estava certa: ele era um viciado. Era doloroso demais para ele. Agora via-se como um drogado, um enfermo. Jamais importara-se em decepcionar os outros, mas não poderia enganar a si próprio. Não poderia quebrar a promessa feita, assim como não poderia parar de jogar. Mas deveria. Sabia que deveria, do mesmo modo que também sabia que não conseguiria. O vício agora o consumia, tomava conta do seu ser. Sentiu uma lágrima escorrer em seu rosto. Salgada, como a vida em que ele agora se encontrava… ou se perdia. Decidiu acabar com o sofrimento. Foi até o escritório, abriu uma gaveta. Pegou o revólver calibre 38. Já estava carregado. Engatilhou-o, levando à própria boca. Fechou os olhos. Com as mãos trêmulas, disparou.

            Tudo estava acabado. Sem mais vícios, sem mais culpa. Apenas o sangue se movia, lentamente, escorrendo pelo chão.

 

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Leila Corrêa (conto com base em notícia)

Posted by epifabiconia em maio 9, 2008

UM MUNDO MELHOR

 

No meio da selva colombiana, eu tentava me acalmar. Dizia para mim mesmo que aquele era um ato de protesto, de luta. Não pensava no seqüestro daquela mulher como um ato de maldade. Eu nem ao menos a conhecia. Sabia apenas que era uma importante figura política. Tudo o que eu precisava fazer era parar o carro em que ela e outra companheira estavam e fazê-las virem conosco.

O carro preto se aproximava, imponente, com as bandeirinhas típicas no capô. Minhas mãos tremiam enquanto eu segurava o rifle. Acendi um cigarro, tentando controlar meus impulsos. Eu não tinha muita escolaridade, mas minha paixão pelos livros revolucionários me deu uma cultura acima do esperado para aquela situação. No meio dos combatentes das FARC, eu era conhecido como “Mestre”.

Meu envolvimento com a milícia se deu por causa do desejo de mudar o mundo. Acreditava que poderia instalar um regime mais justo no meu país. Não concordava muito com os métodos, mas não via outra saída. Aquela foi a única forma que encontrei de fazer alguma coisa pelo futuro da minha gente.

Deixei o cigarro cair, enquanto lembrava das pessoas que já eliminei. Ao olhar para meus companheiros, vi o mesmo nervosismo e a mesma tensão em suas retinas. Misturado ao medo, havia o desejo de terminar logo com aquilo. Todos queríamos voltar ao acampamento com a missão cumprida.

Era fevereiro de 2002, e nós suávamos feito porcos. Sentia as gotas escorrerem pelo meu rosto, ensoparem minha camiseta. A selva estava abafada, o sol piorava ainda mais o calor. Nossas roupas estavam sujas, molhadas e rasgadas, devido aos longos anos de militância.

Quando o carro se aproximou o suficiente, saímos de trás das árvores, onde estávamos escondidos, e formamos uma barreira. Ameaçando dar ré, o motorista viu que havia mais homens atrás do veículo. As mulheres no interior do automóvel empalideceram e esboçaram um choro desesperado. Começaram a gritar quando nós quebramos os vidros e os forçamos a descerem do carro. Anunciamos que, se ninguém tentasse fugir, nada de mal aconteceria. Tentamos ser o mais profissional possível, mas não éramos profissionais. Éramos homens lutando por mundo melhor, mesmo que os nossos métodos não fossem os mais ortodoxos. Só queríamos terminar com aquilo tudo. Amarramos os reféns que não tentaram reagir e os levamos embora.

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Henrique Casagranda (conto com base em notícia)

Posted by epifabiconia em maio 9, 2008

MATA-ME VÍCIO

 

     Faz mais de uma semana que a garota não sai de sua cela para tomar sol nas horas livres do presídio feminino. Ela prefere permanecer calada a maior parte do tempo, mantendo a mente ocupada em bolar um plano para ter de volta o prazer proporcionado pelos químicos que antes consumia. A abstinência da droga inalável provoca um misto de ansiedade e raiva. De forma agressiva, a personagem escrota em que a garota se transformou lembra com frieza os detalhes do motivo pelo qual permanece presa desde o último final de semana das férias.

     Antes de ir lavar a louça, trancada no banheiro fingia que tomava banho enquanto sugava três carreiras do pó branco. Seria o suficiente para enfrentar a mãe, que sempre implicava quando ela saía de casa para curtir as alucinações da madrugada com os amigos. Esperava ansiosamente pela melhor oportunidade da balada: encontrar um cara atraente, capaz de seduzir a menina mulher cheia de curvas e vazia de temor.

     A sua parte ela já tinha feito. Combinou com os amigos de se encontrarem na festa mais agitada do subúrbio. Maquiou-se, vestiu a blusa mais decotada, fazendo par com o jeans mais justo e calçou os pés em saltos altos. Pronto, agora não era mais Laurinha, a filha mais velha de Clarisse. Era Laura, uma mulher inconseqüente em busca de diversão.

     Mais tarde lavou a louça do jantar, fazendo não mais do que a sua obrigação. Ao enxugar a última faca, percebeu que havia esquecido de informar a mãe sobre sua saída. Ainda com o objeto cortante na mão, dirigiu-se à sala de estar, onde Clarisse, sentada no sofá, virava as páginas de uma revista feminina. Sentiu que a droga começava a fazer efeito. Foi quando disse que sairia de casa e não chegaria a tempo para o almoço. A mãe protestou de forma austera, proibindo-a de sair. Inúmeras desavenças anteriores levaram a mãe a tomar tal atitude. Laura não admitia que pudesse ser controlada. Sabia que a mãe estava lhe punindo pelas diversas noites em que passara fora de casa. Insultou-a, dizendo para que cuidasse da própria vida. Permaneceu firme na sua decisão de sair e disse que ninguém a impediria. Clarisse retirou as chaves da fechadura e desafiou a filha a provar o contrário: “Isso é o que vamos ver”.

     Aquelas palavras entraram pelos ouvidos de Laura ecoando como se tivessem sido proferidas por Lúcifer. Seu sangue esquentou e fez com que todas as lembranças felizes de sua vida derretessem, dando lugar ao ódio, um líquido fresco que agora corria por suas veias. Entorpecida, correu até alcançar o pescoço de sua mãe, onde penetrou a faca sem piedade. Aquela facada era um alívio para toda a raiva contida nas brigas anteriores. Desde a separação de seus pais, até a última crise de ciúme que sofrera com seu ex-namorado. Não satisfeita, proferiu mais alguns golpes nas costas daquela considerada agora sua maior inimiga. Cada grito doloroso de Clarisse era um grito de liberdade de Laura, e cada suspiro que a vítima soltava era um peso a menos que a homicida sentia.

     Ainda ofegante, a garota tratou de limpar o sangue que escorria pelo tapete. Ficou revoltada por ter que lavar novamente a faca e trocar de blusa. Mas o esforço compensava. Agora não haveria impedimento algum em seu caminho. Sentiu-se aliviada. A excitação que subia pelo seu corpo lhe provocava arrepios. Certamente aquela noite lhe reservava uma incrível viagem. Arrancou as chaves da mão do corpo caído no chão e correu porta afora, saindo da casa onde nunca mais entrou.

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Amanda Teixeira (conto com base em notícia)

Posted by epifabiconia em maio 9, 2008

DURMA

 

            Sentou-se na minha frente e pôs-se a ler uma revista à luz do abajur. Já estava preparada para dormir: a camisola de cetim vermelha, a pantufa cobrindo os tornozelos, um leve casaquinho sobre os ombros, os cabelos negros tapavam uma parte do rosto. Só eu tinha o direito de tocá-la. Ela não era tão jovem como aparentava. Mas era linda. 

Abro a janela e sinto o ar gelado da noite. A casa estava escura, apenas uma luz no corredor iluminava os poucos objetos. Andei até a cozinha, precisava tomar qualquer tipo de líquido. A leiteira prateada repousava sobre o fogão, no fundo restava um pouco de café. Engoli aquilo, estava amargo e frio, parecia uma água suja. Queria aliviar a sensação ruim que se instalara na garganta, uma sensação de desconforto, um nó apertado.

No quarto, a cama de madeira com os lençóis desdobrados encontrava-se fria. Não representava mais um ninho de amor, pelo menos, desde aquela manhã. As roupas de cama estavam brancas e cheirosas. Ela as lavara, talvez para não ter que sentir o meu cheiro. Deveria querer uma noite sossegada para em seus sonhos encontrar outro homem.

Sentado agora, no lugar em que antes ela lia, relembrava a vida. Fomos felizes. Casamos quando tínhamos 20 anos. Não tivemos filhos. Ela não conseguia levar adiante a gravidez. Nos fins de semana, costumávamos passear pela cidade. Sempre em um lugar diferente. Mas os anos se passaram, e os lugares se tornaram nossos conhecidos. Os passeios ficaram escassos até que acabaram. A vida ficou monótona para nós. Priorizei o trabalho, talvez tenha me descuidado dela. Ela tão bonita. Fazia tempo que não vinha mais deitar a cabeça em meu colo para receber um carinho. Tornamos-nos distantes sem que percebesse. Hoje percebi. Descobri de forma cruel. Peguei o telefone, iria fazer uma ligação. Mas escutei sua voz suave, conversando com um homem que a cobria de elogios. Dei um passo para trás, minhas pálpebras arregalaram. Tinha chegado da rua há pouco, ela não tinha notado minha presença. À tarde me deu uma desculpa qualquer e saiu. O tempo de sua demora me atormentava. Senti nojo, controlei-me, não podia fazer escândalo. Não era coisa de homem.

Escutei o barulho da água escorrendo pelo cano da pia no banheiro. Ela escovava os dentes. Veio para a cama. Pegou uma manta macia e esticou por cima dos lençóis. O vento batia na janela. Encostando sua cabeça sobre o travesseiro e esticando suas pernas pelo colchão, perguntou se eu não iria deitar. Era tarde, quase meia noite. Durma, vou ver um pouco de televisão na sala, respondi. Seu corpo se remexeu de um lado para o outro. Ela demorava para pegar no sono, mas quando dormia nada a acordava, a não ser os primeiros raios de sol.

Um silêncio se estabeleceu no ambiente. Até o vento se aquietara. Na estante da sala, olhava as relíquias deixadas pelo meu avô. Tinha guardado a sua arma antiga, o seu machado, e o seu chapéu. Ele era um homem do campo, lamentava-se por ter tido que buscar emprego na cidade. Minhas mãos cansadas e com calos sentiram o metal gelado do machado entre os dedos.

A partir daquela manhã alimentava em meu coração o rancor. Sempre tinha sido um homem fiel. A cada passo que eu dava, as tábuas do chão rangiam. O escuro não permitiu que meus olhos vissem com nitidez. Levantei o braço direito sobre o ombro, a ponta do metal frio atingiu meu rosto. Segurei firme no cabo, com os músculos contraídos e com os dedos entrelaçados no objeto golpeei velozmente seu crânio duro. Com outro golpe, acertei sua nuca. O cheiro do sangue percorreu minhas narinas. O lençol branco tingia-se de vermelho. Estava feito. Durma em paz. Minha mente lamentou o fardo a carregar. Assim que cheguei à porta da sala, senti um frio percorrendo meu corpo. Andei pelas ruas escuras e silenciosas, todos dormiam. Olhei para trás e não mais consegui ver minha casa que eu agora abandonava. Nunca mais voltaria.

 

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