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Bruna Meneghetti (mote Tcheckov)

Posted by epifabiconia em junho 18, 2008

LUCIDEZ

Jack e eu éramos amigos há anos. Costumávamos matar aula juntos desde os nove anos de idade. Aos quinze, fugíamos de casa à noite para ficar na esquina de uma rua muito movimentada, bebendo uísque, rindo. Durante anos fomos companheiros inseparáveis. Hoje vejo que não passávamos de dois jovens estúpidos e inconseqüentes. Levei anos para admitir isso, porém, me sinto um pouco envergonhado ao dizer que não me arrependo de nossas loucuras.

No dia de meu aniversário de 18 anos, Jack, eu e uns amigos combinamos de sair da escola e ir comemorar em algum lugar. Idéia do Jack. A maioria das coisas que fazíamos eram idéias do Jack. Por mais que, às vezes, eu as achasse meio perigosas. Ele me encorajava. Eu o admirava. Queria ser como ele.
Estávamos ansiosos para chegar ao bar de que tanto ouvíamos falar. Ouvíamos ELE falar. Todos nós sabíamos que o lugar era “barra-pesada”. Meu melhor amigo disse que tinha uma surpresa. Descemos de meu carro e parecíamos nos dirigir a outro mundo. Percorri com os olhos o estabelecimento. Paredes escurecidas, manchas de sangue, pessoas mal-encaradas. Eu estava pasmado. Era o underground. E nós, jovens de classe alta e discernimento baixo.

A primeira coisa que fizemos, depois de sentar e pedir doses de uísque, foi colocar umas moedas naquelas máquinas caça-níqueis. Ganhamos. Repetimos a aposta. Novo êxito. Depois de algumas jogadas, e tendo muito dinheiro no bolso, Jack anunciou que era hora de revelar a surpresa. Choque. Ele tirara do bolso meia dúzia de pequenos pacotinhos brancos. Eu sabia o que era, já tinha visto muita gente cheirando. Estava receoso, mas curioso. Jack, como sempre rindo, chamou-me de estraga-prazeres quando me mostrei hesitante. Eu sentia um misto de emoções. Medo e uma vontade louca de ver como era. Excitação e apreensão. Eu queria cheirar. E era incitado pelo grupo, principalmente por Jack.

Passamos a noite lá, cheirando e bebendo como loucos. O dinheiro? Nunca foi problema para nós. Menos ainda quando descobrimos o quão divertido e arriscado era apostar. Ora ganhávamos muito, ora perdíamos tudo. Não tínhamos problemas e, muito menos, responsabilidade. Depois daquele dia, nada mais tinha graça sem aquele pó branco, que parecia dominar Jack e, confesso, a mim.

Jogávamos em cassinos, bingos, máquinas caça-níqueis, sempre querendo ganhar mais e mais, e cheirar mais e mais. Todo dinheiro que tínhamos era gasto em cocaína, ou em mais jogos. Os amigos não queriam mais andar conosco. Alertavam-nos sobre como estávamos agindo estranho. Eu quase não dormia. Qualquer coisa me deixava irritado. Ficava muito agitado, não conversava mais com minha família. Aliás, meus pais e irmãos não percebiam nada; para eles, só dinheiro e negócios eram levados em consideração. Eu acreditava que todos estavam contra nós apenas por ciúme de minha amizade com Jack. Não enxergava que estávamos viciados. Em cocaína, festas, jogos. Eu era totalmente dependente dele. Não fazia nada sozinho. Era quase uma obsessão.

Tinha a impressão de que era tudo normal. “Aproveitar a vida” era só o que passava na minha cabeça. Só ao lado de Jack conseguiria aproveitar da maneira certa. A droga acaba com a noção da realidade de algumas pessoas. Acabou com a nossa. Chegamos ao ponto de não falar com mais ninguém além de um com o outro. Anos se passaram e mantivemos aquele ritmo frenético, sem medo das conseqüências. Com vinte e um anos resolvemos viajar, nada mais nos atraía naquela cidade, tudo nos entediava, e Las Vegas era muito próxima. Imaginávamos aqueles cassinos luxuosos, pessoas diferentes, dinheiro fácil e, com isso, toda a droga que quiséssemos. A animação quase tomava conta de nós, só não o fazia por um detalhe: a cocaína é que tomava.

Nos primeiros dias, foi tudo como imaginamos. As festas iam até o amanhecer, regadas a muita bebida, drogas, gente alucinada. No quarto de hotel, tudo estava jogado no chão; e bebidas, derramadas por todos os lados. Durante um mês vivendo no caos, resolvemos partir para o “tudo ou nada”. Apostas altíssimas em que se pode ganhar toda a mesa ou perder tudo. Cada um fez seu jogo. Apostamos uma quantia absurda e esperamos o resultado. Inacreditável. Jack ganhara. Uma quantia mais absurda ainda. Um milhão de dólares. Fomos comemorar!

Depois de umas garrafas de uísque, Jack balbuciou algo inaudível e se retirou. Eu sentia que havia algo estranho com ele. Naquela noite eu não conseguia fazer nada, estava anestesiado pelo álcool e perturbado pelas drogas. Na manhã seguinte, quando cheguei ao quarto do hotel, encontrei algo de que nunca me esquecerei. O corpo de Jack. Ao seu lado uma garrafa de uísque, de uma arma e de uma carta. Das palavras nela contidas já não me recordo muito bem, mas uma frase escrita por ele antes de tomar aquela decisão me vem na cabeça sempre que lembro minha fase rebelde: “não quero mais continuar nessa vida sem sentido, seus lunáticos…”. Fiquei indignado. Como ele pôde? Acabar com a própria vida e me deixar! Sem rumo, sem amigo, drogado e abandonado! Ele tivera o momento de lucidez de sua vida, escrevera as palavras que eu precisava ler e, uma vez ao menos, ajudou-me a reconhecer que passara dos limites. Eu queria viver. E só poderia fazê-lo acabando com aquilo tudo.

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