Epifabiconia

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Tais Medici (mudança de ponto de vista)

Posted by epifabiconia em junho 20, 2008

A velha partida

Meus olhos já estavam velhos, cansados dessa vida. Mas, apesar de todos esses anos, eu ainda enxergava bem, muito bem. E, ao olhar para meu neto, o que eu via era um jovem com um longo caminho a trilhar, mas aflito, sem uma direção.

Cedo ficara órfão, e assim, aos meus cuidados. Queria proteger-lhe de tudo que pudesse representar algum mal, ou que desviasse sua boa conduta. Zelava por esse rapaz a cada minuto. Nunca deixei lhe faltar um conselho, um carinho, uma refeição, remédios e beijos de boa noite.
Pensava estar fazendo a coisa certa, até que ele me disse, meio sem jeito, que estava partindo para uma viagem. Não mencionou quando partiria e quando voltaria, muito menos o seu destino. Algo me dizia que era uma partida para sempre. Desde então, não consegui relaxar.

Sentava, levantava, caminhava agitada pela casa. Procurei meu neto pelos cômodos. Encontrei-o fazendo as malas no quarto. Pé por pé, me aproximei e toquei seu ombro direito, em sinal de carinho. Ele sentiu-se incomodado com esse gesto. Mirei profundamente seus olhos, com ternura. Não havia nada para dizer. Terminei de arrumar a mala. Posicionei cuidadosamente as peças de roupa, as meias, calçados, cada pertence. Não os veria mais.

Com o resto de orgulho que me restava, saí da peça antes que lágrimas de tristeza e de angústia caíssem pelo meu rosto. A cada minuto, sabia que nossa convivência estava terminando. Nova angústia dentro do peito. Novamente fui até seu quarto. Abri a porta e vi o jovem deitado. Arrisquei perguntar se estava acordado. Me aproximei mais e suavemente o cobri com o edredom. Dei-lhe um costumeiro beijo de boa noite e deixei-lhe só.

Enquanto terminava meus afazeres na cozinha, pensava se o menino, que eu criara desde bebê, me abandonaria desse jeito. Sem ter para onde ir, sem festinha de despedida, sem palavras bonitas de agradecimento para a avó. Ele não sabia demonstrar sentimentos muito bem. Se é que tinha algum.

A escuridão tomava conta da noite. Apesar das altas horas, não tinha sono. Deitada na cama, remexia-me sempre. Ao fechar os olhos, via a imagem da bela criança que meu neto era, e do adolescente em que se transformara. Por outro lado, poderia ser hora mesmo de ele ter seu próprio espaço. E, com esse ultimo pensamento, adormeci.

Perto do raiar do sol, acordei com o som de passos pelo corredor. Hesitei um momento: levantar ou não. Decidi-me pela primeira. Ainda envolta pelos edredons, caminhei lentamente até a porta e o vi parado ali. Parado como que esperando que eu aparecesse. Senti um ímpeto de abraçar-lhe bem forte, mas não o fiz. Ele veio até mim, beijou minha testa e deu um leve sorriso.

Olhou rapidamente a casa onde morara por tanto tempo e virou-se para sair. Nesse momento, lançou um olhar para a mesa da cozinha. A mesa que eu preparara com a nossa toalha branca (toalha dos aniversários, como eu chamava), na esperança de ter um último café da manhã com meu neto.

Nessa hora deixei as lágrimas caírem livres, pois não era apenas a data de sua partida.

(Texto baseado no conto A Partida, de Osman Lins)

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