Epifabiconia

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Fahra Abdula (conto mote Tcheckov)

Posted by epifabiconia em junho 27, 2008

SETE PRETO!

 

– A pobreza está na alma de cada um.

Estas foram as últimas palavras de meu pai.

A pobreza não estava na alma, estava em nossos bolsos e naquela casa velha e poeirenta, naquele armário sem roupa e na geladeira sem comida. A pobreza estava na morte daquele pai moribundo, jogado no corredor de um hospital qualquer. Mas o velho nunca entendera. Se contentou a vida toda com o trabalhinho medíocre, com as idas à igreja todo o domingo e com aquelas tardes chatas lendo sua enorme montanha de livros. Com conseguia ser feliz?

Segui o meu caminho, sem o último parente que me restava. Os dias, que eram cinzentos e sem graça, passaram a um breu mórbido assustador. Nada me animava, aquelas pessoas me irritavam cada vez mais, o meu chefe rabugento e a sua lojinha ridícula me causavam náuseas.

Nas horas em que não estava sendo explorado por ele, ficava em casa remoendo todas as lembranças tristes. Queria esquecer o abandono de minha mãe, o pai morto, a falta de amigos, de brinquedos, queria apagar tudo isso da minha mente.

Era noite, e caminhei até a casa do meu chefe. Eles tinham viajado para a praia, e eu sabia que aquele muquirana guardava muito dinheiro. Abri a porta com um canivete, muito silenciosamente para nenhum vizinho despertar. Procurei por todo lado e claro! Lá estava, embaixo do colchão. Levei tudo e sumi.

Fui para Los Angeles, a cidade dos meus sonhos. Aluguei um quartinho, comprei roupas novas que me deixaram com um aspecto diferente.

Comecei a freqüentar os cassinos mais badalados, queria conhecer pessoas diferentes, ricas. Iniciei com lances pequenos. Mas eu tinha sorte! Quase sempre ganhava e via a admiração nos rostos de todos. Apostava cada vez mais.

Tudo ali me encantava, ficava alucinado com as mulheres cobertas de diamantes que ofuscavam a minha visão, os homens com o peito estufado, conversando sobre a bolsa e apostas milionárias, o champanhe borbulhante e os charutos cubanos. Tudo isso tinha cheiro, tinha gosto, fazia os meus olhos brilharem. Tudo marcava a diferença entre o antes e o agora. Ali eu me encontrava e seria feliz.

Acordava tarde, comia algo na rua e corria para o cassino louco por mais um dia de alegria.

Certo dia, o olhar de Mirela se cruzou com o meu. Foi mágico. Ela era linda, mais linda que todas as outras que andavam por ali, mais linda que tudo que havia visto. Tinha um ar altivo, mas humilde, trajava roupas finas, que ao mesmo tempo transpareciam a sua simplicidade e bom gosto. Parecia flutuar em vez de andar e, a cada pestanejar ou sorriso, eu me encantava mais e mais. Ela também olhava para mim, de soslaio, para não chamar a atenção do barrigudo que a acompanhava.

Agora tinha mais um motivo para voltar todas as noites ao cassino: Mirela.

Logo arranjei um pretexto bobo para me aproximar dela. Os olhares se tornaram mais intensos, trocamos duas, três, quatro palavras, depois encontros furtivos em cantos escondidos, até que ela foi parar em meu quarto. Foram as noites mais perfeitas da minha vida, momentos inesquecíveis, era tudo que sempre procurei. Um dia perguntei qual a relação dela com o homem que a acompanhava. Era seu pai, e ele não poderia jamais saber de nós dois. Queria alguém com futuro para sua filha, e eu não alcançaria jamais os requisitos de bom partido. Mas isso não me importava, era apenas um detalhe, poderia ganhar uma grande quantia no jogo e fugir com Mirela. Nunca saberiam onde estávamos e viveríamos ricos e felizes para sempre. Ela não concordava com as minhas idéias de riqueza e soberba, me dizia que eu deveria arranjar um trabalho e construir uma vida honesta, só dessa maneira ela ficaria do meu lado. A principio eu não dava ouvidos, achava que ela, por ter sido rica a vida toda, pensava que arrumar um trabalho e uma vida honesta era a coisa mais simples do mundo. E sempre que ela falava desse jeito, lembrava de meu pai e das suas idéias medíocres. Mas pouco a pouco, fui me deixando levar pela sua maneira simples e pelo seu jeitinho de menina. Cogitei a hipótese de trabalhar e de deixar a vida no cassino.

Os dias seguiram, os encontros eram cada vez mais freqüentes. Promessas de amor entrecortadas por apostas mais arriscadas. Estava ganhando muito dinheiro. Eu dava a Mirela jóias, pefumes, levava-a às lojas mais caras e percebia o brilho no seu olhar. Por mais humilde que fosse, nenhuma mulher resistiria a tanto luxo e conforto.

Milhares de olhares sobre mim, eu suando frio, os outros apostadores também. Senti, logo pela manhã, que naquele dia tudo iria mudar. Daria o golpe de misericórdia, ganharia muito, muito, muito dinheiro.

Mudaria a minha vida para sempre e levaria o meu amor comigo. Nunca mais pisaria no cassino, apesar dos momentos bons que me proporcionara. Eu sabia que, se eu continuasse, a sorte poderia mudar e eu perderia tudo que conquistara.

Sete preto. A aposta da minha vida. Passaram-se milhões de anos enquanto aquela roleta girava, girava, girava. As minhas mãos estavam frias, o meu coração pulsava, minha cabeça chegou a doer de tanta ansiedade.

– Sete preto!!!

– Sete preto, é meu, sou eu!!!!!!

Ganhei, ganhei, não tinha palavras, a emoção tomou conta de mim, eu pulava, gritava, abraçava todos a minha volta. Voltei vinte anos e me vi pequeno e triste, olhando para os brinquedos dos outros meninos, sem poder tocar. Agora eu tinha, eu podia! Desejei que o meu pai voltasse, daria a ele uma vida nova. E a minha mãe? Ficaria arrependida de ter ido embora, se soubesse que é mãe do mais novo milionário da cidade. Um milhão de dólares, não sei nem contar esse dinheiro, não consigo imaginá-lo.

Mirela. Precisava encontrá-la, onde estava que não me viu ganhar? Agora sim, agora sim! Era um homem completo, tenho a mulher e a vida com que sempre sonhei. Vamos viajar, conhecer todo o mundo, gastar e gastar, criar os nossos filhos com o máximo de conforto e dar a eles tudo que sempre desejei, mas nunca tive.

Ali está, com o pai. A hora é agora, vou me apresentar, dizer que acabo de ganhar um milhão, que quero a mão de sua filha e ele que se dane se não concordar. Sou rico! Posso tudo!

Os dois estavam numa conversa animada, nem me viram chegar. Ela estava feliz, com certeza já sabia que o seu amor estava milionário.

– Viu como o meu palpite estava certo? Esse vai ser o melhor golpe de nossas vidas!

– Agora é só casar com o babaca, fazer o meu papel de esposa maravilhosa, e oops! Ele morre tomando vinho, e nós?! Vivemos felizes para sempre!

– Um brinde ao seu futuro marido Mirela, e que venham muitos mais.

– Um brinde papai!

Os dois riram com prazer e se beijaram. Beijaram. Os dois se beijaram. Não eram pai e filha, não eram ricos, ela não me amava e me achava um otário.

Mesmo com as minhas roupas caras, mesmo com um milhão no bolso, ela me achava um otário e queria me matar. Como não percebi? Estava ali, o tempo todo, na minha cara, as evidências praticamente gritavam para que eu percebesse que era uma farsa.

A mulher que eu idolatrava, que eu amava, a mulher que eu cuidaria pelo resto da minha vida, que faria feliz, a mulher com quem eu realizaria todos os meus sonhos. Ela que me permitiu esquecer aquele passado.

Eu estava rico, mas mais pobre do que nunca. Em uma pobreza pior que a de antes, me corroia por dentro. Eu olhava em volta e tudo me causava náuseas, aqueles cheiros me enjoavam, e aquelas pessoas pareciam de plástico, falsas, irreais. Me lembrei de meu pai, com a sua cara adoentada, mas feliz, sentado em seu cadeirão velho lendo milhares de livros. Me lembrei que tudo nesse tempo era ensolarado, que as pessoas sorriam na rua, com sorrisos verdadeiros. Éramos todos iguais, éramos todos pobres, eram todos felizes. Menos eu. Nunca fui e nunca serei.

Caminhei meio zonzo para fora do cassino, joguei o cheque e ele foi voando por aí. Entrei no meu quartinho e me enforquei. Morri, como o meu pai moribundo, jogado no corredor de um hospital qualquer.

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